sábado, 13 de fevereiro de 2010

Manifesto em nome da defesa intransigente dos Direitos Humanos.

     Em 21 de dezembro de 2009, em cerimônia pública em Brasília, foi lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), o terceiro da história, e desde sua publicação, tem causado forte reação contrária de setores conservadores da sociedade brasileira.
     Infelizmente, muitos desses ataques ao PNDH-3 desconsideram o contexto de amplo de debate nacional que antecedeu a elaboração do documento através de um processo de discussão que envolveu grande participação popular, consultas públicas e conferências em todos os níveis (municipal, estadual e federal), coroadas, em dezembro de 2008, com a realização da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, a qual contou com a presença de milhares de representantes do poder público e da sociedade civil.
      Assim, é imprescindível não falar como nunca antes se tinha avançado tanto, nesse país, no sentido de contemplar a agenda popular de luta por direitos humanos ao tratar de questões como a democratização do acesso à terra e dos meios de comunicação, a abertura dos arquivos da ditadura militar (1964-1985) como direito do povo brasileiro à memória e à verdade, a autonomia das mulheres para tomar decisões sobre a própria vida reprodutiva, união civil homossexual, a adoção por casais homoafetivos e a defesa de um modelo econômico pautado pela sustentabilidade.
     Em linhas gerais, o debate sobre o PNDH revela ao menos duas vertentes fortemente divergentes na compreensão dos direitos humanos. De um lado, os que compreendem os direitos humanos com nuances distorcidas na medida em que ficam condicionados a interesses próprios ou a privilégios “intocáveis”; de outro, os que compreendem direitos humanos como conteúdo substantivo de uma luta cotidiana para que cada pessoa possa ser o que desejar ser e não como os outros gostariam que fosse. A você, caro leitor, que dedica seu precioso tempo a esta leitura, o que parece ser mais racional?
     É impossível imaginar que a sociedade brasileira não repudie a tentativa de politização eleitoreira do PNDH. Trata-se da construção de pressupostos para uma sociedade que garanta vida com dignidade para todos os brasileiros, realidade que só acontecerá quando as Políticas Públicas de Direitos Humanos forem prioridades da nação. Nesse sentido, todo cidadão crítico deve repudiar a imposição de argumentos rasos e maniqueísmos tolos como verdades absolutas, principalmente quando visam desconstruir o PNDH e minar o cenário de debate.
     Nada mais intolerável que a discriminação de negros, ciganos, indígenas e outros grupos sociais; o machismo que perpetua a opressão e a violência contra a mulher; a falta de abertura para a liberdade e a diversidade religiosa impedindo o cumprimento do preceito constitucional de um Estado Laico; a criminalização da juventude, dos movimentos sociais e dos defensores de direitos humanos; a legitimação da violência e das desordens latifundiárias causadoras da pobreza no campo e da face perversa do processo de acumulação do agronegócio; o patrimonialismo que coloca o Estado numa condição subserviente a interesses privados; o silenciamento diante dos veículos de comunicação descompromissados com os direitos humanos, com o direito à comunicação e sem qualquer responsabilidade social e a manutenção ilegítima de privilégios a militares revanchistas e corporativistas que insistem em ocultar a verdade sobre a ditadura militar e negar punição devida aos torturadores do regime.
     Talvez um dos pontos mais críticos seja este último. Como bem alertou o cineasta Silvio Tendler “O regime militar não está sendo julgado pela quebra do sistema público de saúde ou pela quebra do sistema educacional (...). A sociedade quer apenas o julgamento e condenação da prática de crimes hediondos. Tortura, estupro, morte e roubo não podem ser atos políticos passíveis de anistia”. É essa mesma arbitrariedade/permissividade, gestada dentro do poder público, que garante a permanência da tortura mesmo que condenada pela lei, dos altos índices de letalidade das ações policiais, da impunidade que livra “colarinhos brancos” e “mensaleiros” e condena “ladrões de margarina”, que faz vista grossa para a truculência da polícia. Esta mesma que, recentemente, reprimiu de forma brutal manifestações pacíficas de dezenas de jovens contra corrupção no governo Arruda (Distrito Federal). A violência ficou registrada em cenas deploráveis com direito à tropa de choque, cavalaria, tanque de guerra, bombas de efeito moral, gás de pimenta e pisoteamento de manifestantes pelos cavalos.
     Quem não se recorda do episódio ocorrido na madrugada do dia 23 de Junho de 2007 na cidade do Rio de Janeiro em que três jovens de classe média espancaram e roubaram a empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto (32 anos), num ponto de ônibus,  quando seguia para o trabalho. Como “justificativa” para o que fizeram, alegaram ter confundido a vítima com uma prostituta, o que faz do crime ainda mais assustador.
     Mas a violação dos direitos humanos ainda continua por aí correndo o risco de passar de forma desapercebida por cidadãos mais desatentos. Quando se noticiou recentemente o episódio do garoto de 2 anos de idade, no interior da Bahia, que teve dezenas de agulhas introduzidas no corpo pelo padrasto, não foram poucas as referências da mídia que consideravam o crime como um nefasto ritual de magia negra com envolvimento adicional de uma mulher caracterizada nas reportagens como “mãe-de-santo”. Sob um olhar mais crítico fica difícil não reconhecer que diversas religiões de matrizes africanas tiveram suas crenças violentamente agredidas por informações discriminatórias, tanto que muitos pais e mães-de-santo tiveram de vir a público explicar os princípios de pacifismo de suas crenças. Essas veiculações preconceituosas devem servir para jamais nos fazer esquecer que as bases históricas da religiosidade brasileira também passaram pelo ferro, fogo e chicote. Para que essas heranças duras de opressão não ditem vez nos tempos futuros, nada mais respeitoso e reconciliador entre passado e presente que os espaços públicos garantirem o direito a todos de expressar sua religiosidade livremente, seja ela cristã, judia, de matrizes africanas, indígenas, entre outras.
     Outra questão polêmica. Diante da inteligência do espectador violentamente agredida por uma mídia que financia a baixaria escancarada, nada mais justo do que as concessões de emissoras de rádio de televisão, como concessões de um serviço público, respeitarem os direitos humanos e de cidadania. Não há ataque à liberdade de expressão, mas sim uma proposta de mecanismos de fiscalização e de participação da sociedade civil com relação exclusivamente aos direitos humanos. Não é nenhum absurdo totalitário, apenas o que já ocorre na Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos com a criação de agências reguladoras pelo Estado que contam com a participação de diversos setores da sociedade. Na verdade, o que mais tem assustado os donos de mídias é a possibilidade de cassação das outorgas concedidas para exploração dos serviços públicos de radiodifusão no caso de as empresas de comunicação não seguirem as diretrizes oficiais em relação aos direitos humanos. O que os empresários de comunicação precisam é de parar de rotular de censura toda e qualquer iniciativa que vise, minimamente, cobrar responsabilidade social dos meios de comunicação. Ora, nada mais constitucional que as concessionárias de serviços públicos de rádio e TV sejam cobradas quando violarem os direitos humanos por meio de penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação de outorga. Contra algumas emissoras que fizeram parte da reação empresarial contra o PNDH-3 pesam o fato de pouco envolvimento na construção da Política de Direitos Humanos e o boicote promovido pela Associação Brasileira de Emissoras de Televisão (Abert), pela Associação Nacional de Editoras de Revista (Aner) e pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Vale lembrar que, no dia da publicação do Programa em Brasília, grandes veículos de comunicação davam mais destaque para o novo corte de cabelo da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, do que para a pauta de Direitos Humanos. Basta pegar algum jornal de grande circulação nacional e avaliar a pauta e as prioridades de cobertura do dia 21 de dezembro.
     O que dizer também das relações de trabalho que precarizam-se cada vez mais, dos professores agredidos dentro das salas de aula, da seca do Sertão e daqueles que se aproveitam politicamente dela, da colocação das populações ribeirinhas e dos povos indígenas em posição secundária quando o assunto é grandes projetos hidrelétricos (por que tanta resistência em se discutir as arbitrariedades na construção da Usina Hidrelétrica do Belo Monte na Bacia do Xingu no coração da Amazônia?), do avanço desastroso da fronteira agrícola à custa do desmatamento. Será que a Pandora de Avatar é aqui?
     Enfim, não podemos admitir recuos. O que está posto como desafio não é mudar o PNDH, mas sim tomá-lo como instrumento de transformação radical da sociedade em que vivemos para que a realização plena dos direitos humanos seja um sonho possível de todos nós.

Para ler o PNDH-3 na íntegra acesse: http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Velejando


     Colha agora os frutos da desordem. Os mares revoltos acenam que terra firme a muito deixou de existir. O medo é convívio diário e a tristeza já tem sua marca impressa no veleiro. Sempre tive mais talento para a melancolia, nunca precisei esconder. Às vezes tento apagá-la, na maioria das vezes não. Deixo doer feito silêncio inconfesso.
      É o preço que se apaga por algumas inspirações.
     Não há ponto de partida nem destino de chegada. Moro na trajetória da estrada incerta, no incontável desejo do que ainda não sei mensurar, no terreno das palavras recriadas, na vibração de um som que teimo não desafinar.
     Escolhi para hoje uma letra de Caymmi, uma epifania de Clarice e um poema de Drummond.
     A monotonia veio dos teus olhos; o peso da vida, sim, eu aceito, é defeito de fábrica.
     Em medidas contadas, o tempo se encarrega de desfazer as mágoas. Ressaca das águas, das lágrimas também. Mistérios à deriva, a espera que os ventos tragam coragem para enfrentá-los. Ainda não me candidatei. Já fui mais pretensiosa, nisso, é verdade, melhorei...
      A vida me espera no cais. Os lampejos do farol não fazem do caminho mais seguro, nem a maresia mais suave. Mas nada tão difícil quanto compreender a essência das despedidas. Nas retinas do porto as cores da saudade têm contrastes trágicos e comoventes. Também um pouco de pressa.
 
“Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos...”


     E aceito o risco iminente de amar...


“É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar ...”