domingo, 29 de agosto de 2010

Miudezas

ARTE DE SER FELIZ    
    
     "(...) Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
     Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
     Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim. "

MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. 26ª edição, Rio de Janeiro: Record. 

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Perguntas e respostas

     Existem dois tipos de perguntas. Uma que precisa ser respondida e outra em que se aprende convivendo com ela. Há perguntas que se inserem no campo prático da vida. Outras são filosóficas, existenciais. Por vezes, aflitivas. Perguntas práticas são aquelas que se contextualizam no campo da objetividade exigindo raciocínio lógico e ponderação. As perguntas existenciais, por sua vez, não provocam respostas instantâneas. Ao contrário, exigem demora e um longo processo de reflexão. Viver talvez seja uma forma interessante de respondê-las.
     Tenho a convicção de que uma pessoa se torna especial entre as demais justamente pela capacidade de viver intensamente pelas causas que acredita, de fazer com que seus projetos de vida sejam capazes de transformar quem ela é a partir daquilo que ela faz. É uma dinâmica de aproximar-se cada vez mais daquilo que é mais genuíno em si próprio. Por sinal, algo raro nesses tempos difíceis e corridos em que a inteireza perdeu  seu prestígio nas relações humanas.
     Pessoas que se empenham na realização de seus sonhos não se conformam com a uniformidade. Todo dia precisa ser diferente, descobrirem-se de modos diferentes. Certamente, o preço de ser diferente requer coragem. Coragem de ser, não simplesmente de fazer. O "ser" é mais difícil do que o "fazer", afinal, é no "ser" que o "fazer" se realiza plenamente. Faço a partir do que sou e do que a cada dia se junta ao que eu sou, fazendo-me mais dona de mim. 
     Quem sabe um dia ainda não descubramos que o coração guarda um lugar de silêncio que nada sabe fazer. Lá existimos em paz, sem a cobrança cruel da utilidade. É lá que está nosso primeiro significado, quando todas as coisas cessam e fica só o que nós realmente somos. Nesse lugar reside nosso lado mais sedutor, já que nele está guardado o valor essencial da autenticidade. Tudo mais é acidental, da maquiagem borrada ao calo do salto alto por trás de uma falsa elegância.
     Quero antes de tudo que o meu fazer tenha as marcas do que eu sou. É simples: medicina há muitos que fazem, mas é no exercício da profissão que cada indivíduo se mostra em sua intimidade mais profunda. Muitos fazem a mesma faculdade, mas se encontram de maneira diferente com o conhecimento que compartilham (compartilhamos?). Daí, surge a diversidade das práticas. Algumas mais acolhedoras, outras menos.  
     Agir é um desdobramento do meu ser. Todos são antes de fazerem qualquer coisa. Há um significado raro e único em cada ser humano, mesmo que, um dia, nós fiquemos totalmente impossibilitados de realizar alguma ação. É, inclusive, desse princípio que nasce todo o desdobramento conceitual dos direitos humanos. Nós somos mesmo na incapacidade dos movimentos, na inconcretude dos gestos, na transitoriedade das palavras, na limitação dos saberes. Somos muito mais do que podemos dizer sobre nós mesmos.
     Eu desejo que nunca me faltem perguntas que me incomodem, que questionem meus  princípios, que me recordem minhas origens e aflorem meus sentidos, mesmo que as respostas não sejam tão fáceis assim.

Com a palavra, Vinícius...

O haver


Vinícius de Moraes




Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! Porque eles não têm culpa de terem nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para comer tudo quanto existe


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida


Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinícius


Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história


Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil


Resta esse sentimento de infância
Subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade


Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje


Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante


E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança


Resta esse desejo de se sentir igual a todos
De refletir em olhares sem curiosidades e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino


Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada


Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca pelo equilíbrio no fio na navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo
E esse medo infantil de pequenas coragens


Extraído do livro “Jardins Noturnos- Poemas inéditos”