quinta-feira, 29 de abril de 2010

Da poeira aos detalhes

     Não me venha convencer que a lucidez é uma proposta racional. Sempre fui pouco convencional, até nisso. Até para acreditar no óbvio destino de uma felicidade politicamente correta. Sorrisos muito simpáticos nunca fizeram meu estilo, nem minha cabeça.
     Já me perdi em inúmeras das ruas que você diz conhecer todas as trilhas. Nas linhas do artesanato que faço, estou longe da pretensão de desvendar os contornos diversos das causas que me movem. Fui feita para bordados extensos, tecidos pra dentro, controversos. Dos versos, preferi sempre os contrários. Contraditória, a rima ao avesso, sem gesso enquanto teço mais um pequeno retalho de dor desses dias de tropeço. Os joelhos esfolados são apenas mais um dos detalhes, não repare.
     Costura, bordados, reparos. Ainda ando me confundindo nas cores que escolho. Na maioria das vezes, descombino. As alegrias são acontecimentos raros. Caros também.
     Gosto desse ar de museu de antigüidades que a vida me deu. Concessão sem direitos autorais, inclusive. O barulho que ecoa no recinto é só o suficiente para uma pausa no ensaio do silêncio. Depois, a penumbra entre luzes, o tempo da observação, o olhar feito para a demora. Cada um guarda o que pode e o que tem para guardar.
     Amontôo a vida pelos cantos. O tempo segue seu rumo, só eu não. Parei na poesia que não termina nem permite intervalos duradouros. Eterna só mesmo a espera. Enquanto isso, continuo envelhecendo aos poucos... Nessas páginas, lentamente.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Visita

     Deus mora na surpresa. Desvendei, num desses dias, um de seus mais inusitados segredos. Ele veio até minha casa me trazer uma encomenda. Chegou sem avisar numa tarde quente, abriu a geladeira sem muita cerimônia e bebeu um copo de água gelada. Por fim, pediu que eu não repasse sua pressa e que tinha vindo apenas para me entregar o livro que eu havia pedido. Depois, partiu.
     Seguiu a trilha que dava para o fundo do quintal. Deu comida aos passarinhos, provou da doçura da jabuticabeira e saiu pulando por entre as  margaridas para não machucá-las. Parecia comigo quando criança.
     Só que o melhor ainda estava por vir. Ao retornar para dentro de casa, a surpresa de um bilhete deixado por Ele na porta da minha geladeira. 
     - "Nem Deus escapa de momentos de cafonice" diriam certamente alguns dos meus amigos mais críticos. 
     Eu, no entanto, só confirmei minhas suspeitas. Sempre acreditei que Ele fosse um romântico incorrigível, quem sabe um leitor de poesia. É próprio de sua natureza transcendental gostar mais do discurso simbólico do que do racional. Tive até a ligeira impressão de vê-lo um tanto irritado por causa dos desmandos intolerantes revestidos de justificativas "pseudo-religiosas" que alguns cometem em nome Dele pelo mundo afora.
     Recolhi imediatamente o rascunho improvisado. Guardei-o na gaveta das minhas memórias atemporais. Era inacreditável imaginar que eu tinha um bilhete Dele escrito só para mim.  Entretanto, preferi nunca comentar sobre o fato, sob pena de me acusarem de ter perdido de vez o juízo.
     Nessa noite, num acesso de coragem, resolvi dar detalhes do acontecido. A letra era um pouco feia, admito. O conteúdo, por sua vez, compensava a pouca habilidade para a caligrafia. Versos simples e irreverentes retirados do poema “Filhinha” da poetisa mineira Adélia Prado: "Deus não é severo mais. Suas rugas, sua boca vincada são marcas de expressão de tanto sorrir pra mim."