domingo, 20 de março de 2011

Devaneios insones- parte I

     Luísa nunca foi muita afeita a sonhos demorados. Sempre teve um pouco de medo do que a esperava no dia seguinte quando os primeiros feixes de sol penetrassem pelas frestas da janela de seu quarto. Abrir os olhos sempre gerava um estranhamento. Era como se estivesse obrigada a um compromisso difícil de ser cumprido. Alguns pensavam que se tratava de uma recusa à frustação. Talvez se amedrontasse um pouco com o seu desajeito em lidar com escolhas difíceis no intangível mundo do real e, por isso, tenha preferido viver num lugar de sombra e neblina constantes.
     Suas manhãs eram feitas de um ar rarefeito. As olheiras disfarçavam-se no esfumaçado da maquiagem mal tirada da noite anterior. De fato, a menina morena de olhos acastanhados tinha uma beleza comum. O peculiar era mesmo o costume de viver de sentimentos anteriores e cumprir um ritual secreto de analisar seus traços disformes olhando-se cheia de autocrítica através do espelho do banheiro. Ela nem precisava de inimigos. Dava conta do recado sozinha e com uma maestria invejável.
     Havia um mistério discreto disfarçado naqueles olhos de senhora. Uma espécie de mulher oblíqua, incongruente, sinuosa. Há algum tempo, teve-se notícia de que ela desejava morar em algum lugar distante, que havia se cansado da inadequação. Queria reiventar uma outra identidade. Quem sabe uma oriental em Paris ou uma latina em Nova Iorque. Por hora, contentar-se-ia com aquele despertar possível. Era preciso criar coragem para escovar os dentes, lavar o rosto, torcer a maçaneta da porta, cruzar a rua e cumprir os compromissos inadiáveis da agenda.
     O jazz ensolarado do famoso disco de Miles Davis, “In a Silent Way”, vinha suavemente do quarto. Tinha por função amenizar a dureza dos pensamentos daquela manhã cinzenta de outono. Era um som baixinho para não correr o risco de acordar a cidade que ainda dormia profundamente.     
     Acabara o pó de café. A geladeira traduzia a solidão da casa. Sobraram somente duas maçãs murchas entreolhando-se esquecidas do dia em que pareciam docemente palatáveis na prateleira do supermercado. Dentre as poucas plantas da casa, destacavam-se as recatadas violetas roxas. Coincidência ou não, a matiz mais conhecida da paixão e da dor. Apesar da cor dramática, ainda era preciso muito mais para se colorir todos os cômodos da casa. A falta de móveis nos ambientes deixava lacunas e incômodos irreparáveis.
     Já quase amanhecendo, a jovem aproveitou a pouca disposição que ainda possuía  para separar alguns papéis de que precisaria mais tarde. Nem a loucura do seu quarto a assustava mais. Tudo ali parecia contraditório. Sapatos, roupas, fotos e livros em uma natural desordem existencial. A essa altura até o jornal do dia já havia envelhecido de tanto tédio e passado.
     07:15 no relógio do microondas. Apenas três horas de sono e uma semana inteira pela frente. O bip do eletrodoméstico avisava que o leite já estava morno. Só faltou mesmo aquecer o coração dos desamparos da madrugada. No entanto, não se iludiria pensando que pudesse ser diferente dessa vez. Não havia tempo para se lamentar. Luísa já estava muito atrasada.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Samba com bocado de tristeza

     A aflição termina quando as palavras perdem a importância semântica. Quando deixam de existir porquês decentes e explicações plausíveis para justificar a ausência. Quando a distância subverte as complexas combinações geográficas e passa  a existir somente a intersecção dos meridianos que mais importam. Se assim fosse, ninguém precisaria mais ligar para o fato da festa ter acabado, afinal as luzes do recinto se apagariam para outras tantas se acenderem. O coração-acompanhado subiria a serra e continuaria aquecido por samba, mesmo tendo o carnaval chegado ao seu fim.
     O fato é que nunca precisei ocultar as entrelinhas, a lembrança que o poema me traz, a explícita autoria para o verso. Nem teria talento o suficiente para disfarçar. O desejo, com data e hora, já ficou confesso num rascunho de papel em lugar de fácil acesso. O que sei até agora é que o corpo reclama o encontro, a presença tocável, o calor da voz, os dedos quentes entrelaçando nos meus quando a noite está fria, a rua comprida e assunto teima em acabar no meio do caminho.
     O jeito é saber lidar com o que sobrou da semana para decifrar os últimos acontecimentos. A ameaça de verbalização, o tremor na fala quase sussurada, o gesto inacabado, a beleza da tristeza entremeada de risos e autocrítica. Chego a pensar que o amor de Pierrot só é comovente e belo porque é igualmente triste e improvável. 
     Depois da viagem de alguns dias, o retorno para casa. Só me resta reunir resignadamente as correspondências na caixa do correio como quem retoma a banalidade do cotidiano. A rotina já imprimiu compulsoriamente suas cobranças e me obrigou a abastecer os armários da casa. Na simplicidade da lista de compras, volto a sobreviver de versos longos e motivos breves. Deixo o supermercado, após o hábito antigo de fazer compras à noite, com sacolas plásticas fartas de realidades que desconheço. Só espero que,  mesmo embrulhada de diferentes modos, a felicidade me venha sempre, ainda que em medidas menores.

[21:00 horas, noite de quarta-feira de cinzas, a autora configurando memórias em meio a afazeres domésticos ao som de "Samba da Benção" do mestre Vinícius de Moraes]