sexta-feira, 24 de junho de 2011

Devaneios insones- A metade reacionária

     Luísa nunca acreditou que houvesse coerência no amor quanto mais algum grau de justiça. O conselho dos mais velhos (“Ainda vai encontrar alguém CERTO para você”) parecia uma assertiva que, de tão misteriosa, nem tentava desvendar.
     O amor chegou como o avesso de tudo que ela sempre acreditou. Uma espécie de negação racional, uma estranha sensação de falta de controle. Foi difícil acreditar que o amor não era linguagem matemática nem podia ser mensurado nas mágicas gotas/mim de uma prescrição médica. Para piorar, o amor também não era feito de socialismo nem suportava utopias platônicas. Tinha um incorrigível egoísmo, um desejo inescrupuloso, um jeito de caça-níquel fabricado para o jogador perder todo o seu merecido salário em uma só noite. 
     Os romances que Luísa adorava ler esconderam dela que o amor viria com todos os defeitos que condenava veementemente. O peso de provocação nas entrelinhas, a vulnerabilidade inata, a cobrança sem motivos, o pedido esquecido para ir embora, a incompetência de gestos, o tremor na voz, a inquietação das dúvidas. Sentia-se como se estivesse arruinando sua comedida vida financeira afundando-se em dívidas crescentes multiplicadas por complexas operações de juros compostos. Teve que aprender o exercício diário de engolir a seco os próprios conselhos e aceitar o temível fracasso com a desculpa fajuta de um acaso inesperado. Acabou admitindo predileção sem critério claro, fez concessões julgando-se cronicamente culpada. A jovem estava em meio ao mais completo e terrível desequilíbrio.
     Luísa só não esperava ter de admitir a contravenção. Burlou os horários, adulterou documentos, perdeu compromissos que tempos atrás jamais admitiria, criou esconderijos, aceitou o perigo e ligou mesmo quando já era tarde e não tinha nada de novo para dizer. Faltava só ameaçar com gentilezas e invadir a privacidade alheia.
     Pronto. Agora, já não faltava mais.
     Por fim, restou a brincadeira do populismo. Um pouco de atenção e um abraço já eram suficientes para fazê-la esquecer dos lastimáveis problemas do planeta. A fome na África não era maior que o seu desejo de dividir o mesmo saquinho de pipoca no cinema. O aquecimento global nem de longe a preocupava mais do que compreender porque os olhos dele eram capazes de produzir labaredas tão incendiárias em sua rotina monótona. No momento em que estivessem juntos, o Oriente Médio poderia entrar em guerra e o preço do barril de petróleo disparar no mercado internacional que nada seria mais caro do que o direito a um passeio a pé com ele, no fim de tarde, pela cidade calma e sem a fumaça dos barulhentos automóveis. Nenhum debate no congresso capaz de mudar os rumos da nação teria maior prioridade do que terminar uma discussão e corrigir a aspereza da palavra desmedida dita em uma hora de raiva. 
     Mas os pensamentos de Luísa ainda não foram totalmente revelados. A outra metade do seu amor reserva mais surpresas controversas.
     Era censura...
    
“- Veja bem o que você vai dizer.
- É melhor nem continuar. Você não sabe o que está falando. Um absurdo sem tamanho!”

     E também ditadura...

“- É melhor você não fazer isso ou vai se arrepender.
- Não, eu já falei que não. Francamente.”

     Luísa estava sem saída. Seu amor era tão imperfeito que se sentiria recriminada quando o confessasse publicamente. Os contos de fadas ainda eram fortes demais no imaginário coletivo para entenderem os argumentos de uma menina de vinte e poucos anos. O mundo era hipócrita o suficiente para rejeitar sumariamente a sua sinceridade. Por medo, decidiu viver o amor em segredo. Reacionário, de tanto silêncio.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Perdendo tempo

     Nem sei explicar minha obsessão pelo tempo, por esse anseio de sentar ao lado de pessoas capazes de narrar as causas dos sulcos impressos no próprio rosto, da história que justifica as lágrimas tímidas que ninguém viu nem consolou, das memórias que o amor sussurra sem pressa em hora tarde e da saliente cicatriz. Quero viver da substância dos dias, do empenho diário, da inquietação que amadurece a hora presente. Engana-se a si mesmo quem não pensa no quanto de choro é preciso para sustentar o riso que abre uma noite de domingo.
     Conto os dias como quem faz um ritual de passagem. Pinto o calendário com as matizes do entardecer. Vejo as estações mudando de forma e os raios do sol desenhando no céu as verdades que eu ainda não sei enfrentar. Porém, já não temo mais as contradições que  encontro por aqui.
     Volto ao passado como quem resgata uma nota promissória. Gosto dos móveis antigos, da beleza escondida atrás dos vitrais coloridos, do tecido emaranhado da rede que eu construí para descansar das perdas, da dúvida que existiu antes da conclusão ser declarada, do ensaio, dos preparativos, da bagunça nonsense do quarto mantendo certa leveza para os compromissos diários, da pausa na corrida para amarrar o cadarço do tênis.
     Só não corro o suficiente para fugir da tristeza que me cerca. Nem tenho tamanha pretensão. Ao contrário, chamo-a para conversar, nos olhamos sem subterfúgios e, algumas vezes, até agradeço por sentar ao meu lado e me sussurrar alguns versos que guardo numa caixinha de madeira na mesa de cabeceira ao lado da minha cama. Depois volto naqueles rascunhos, limpo a poeira delicadamente e torno a aguardá-los como coleciona relíquias de inestimável valor.
     Acho poética a melancolia. Ela possui contornos estéticos frágeis e delicados além de um ar de inutilidade que me comove.
     Não tenho pressa. Busco o que tem gosto de espera, os poemas que demoram para nascer, o que antes fora promessa, o desejo não consumado que já é bom só na tentativa. Quem sabe ainda chegue o dia em que eu tenha plena coragem de assumir em público cada fracasso cometido a ponto de reconhecer que sou muito mais fruto deles do que das conquistas que julgo ter.
     Acredito mais em quem economiza do que em quem esbanja. É sempre mais circunstancial a liquidação. Bom mesmo é namorar a vitrine.


terça-feira, 14 de junho de 2011

O dia do poeta de todos os dias

Para encerrar como se deve a noite dessa segunda, que tal Fernando Pessoa?

Vou explicar o motivo do convite. Hoje, dia 13 de junho, se estivesse vivo, o genial poeta português estaria completando 123 anos. 

Um bom leitor de poesia certamente não pode deixar essa data passar em “brancas nuvens”. Ela merece uma comemoração especial. Por isso, selecionei 3 trechos de alguns dos meus poemas preferidos do autor. Os dois primeiros são versos assinados pelo próprio (Fernando Pessoa, ele mesmo) retirados da famosa coletânea “Cancioneiro”. Já o terceiro é um trecho do poema “Tabacaria”, talvez um dos mais conhecidos de Álvaro Campos. Aproveite a noite fria, tome um chá, aqueça-se de lirismo e  esqueça a pressa.  

“Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
A Outra.
Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De que é a boca?
Da Outra.
(...)”

"(...)
PAIRA à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta,
Não sabe o que quer.
E uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!..."

“ (...)
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
(...)”

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Recomendo

     Não tenho a menor dúvida de que literatura é o mais puro rock and roll. Por isso, o blog novamente lança-se no universo do cinema, uma arte com uma capacidade narrativa única, e arrisca uma sugestão de filme com esse tema.
    
Simplesmente impressionante. Essa é a palavra que descreve a minha sensação imediata ao assistir hoje o documentário “When You're Strange - Um Filme Sobre o The Doors”. No longa-metragem o diretor Tom DiCillo, com a narração do ator Johnny Depp, apresenta cenas de arquivo de ensaios, de shows e de momentos mais íntimos da banda "The Doors", com destaque ao polêmico vocalista Jim Morrison. O filme começa com a formação do grupo em 1965, quando estrearam no palco e lançaram o primeiro álbum, até o fatídico dia da morte do cantor. Trata-se de um importante registro cinematográfico da turbulenta carreira de uma das mais importantes e históricas bandas de rock de todos os tempos.
     Vale a pena conferir a pegada jazzística da bateria de Densmore, a mistura do clássico e do blues do tecladista Ray Manzarek e o estilo flamenco do guitarrista Robby Krieger, autor do primeiro single do grupo. Fica bem claro a marca dos Doors: piano, guitarra, bateria e baixo dando ao ouvinte o direito de escutar as letras. Isso claro sem deixar a desejar na energia que marca o gênero. Um retorno imperdível ao universo do rock dos anos 60.