sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Gerundismo- Ano 2013

Exercitando mais a autocrítica para ver se a vida ganha novos rumos.
Questionando se a ternura compensa ou se é uma luta solitária e perdida desde o princípio.
Prometendo ressarcir o travesseiro pelos lamentos que ele aturou pacientemente no último ano.
Jurando nunca mais admitir morrer na praia passando calor, com suor escorrendo na testa, mãos calejadas e, ainda assim, vazias.
Guardando as olheiras como se fosse uma daquelas relíquias que a gente mantém perto só por terem uma história comovente para contar.
Assumindo derrotas, fios brancos e uma tal de ansiedade que se somatiza em dores chatas na coluna.
Negociando com a enxaqueca um justo período de trégua.
Rezando com quem precisa adquirir mais fé para abraçar a vida reconciliada, de cabeça erguida e mais madura.
Recitando um poema que me convença dos contrários que me fazem bem.
Dando “Bom-dia” ao que me presenteia de graça e “Até nunca mais” ao que me cobra sem acrescentar.
Aconselhando as violetas da minha janela a serem menos tímidas e mais corajosas como fazem os girassóis.
Redecorando o quarto como quem deseja aposentar velharias.
Escolhendo melhor o que comer e priorizando dormir.
Começando a vida profissional de médica como alguém que pretende recuperar diariamente os motivos primeiros dessa trajetória.
Querendo meu rosto estampado num sorriso desmedido e minha voz impressa numa gargalhada capaz de acordar os japoneses.
Cuidando melhor de mim para não me arrepender amargamente depois.
Traçando sérias resoluções de vida com uma racionalidade nunca antes pretendida, mas aprendida recentemente à duras penas.
Brindando o presente, porque mesmo se nada der certo aos idiotas ainda sobram a ironia e o honrado título daqueles que, pelo menos, não atrapalham o caminho de ninguém.

[Caro(a) leitor(a), celebre os anos ímpares, os gerúndios, os tempos verbais que criamos para subverter o presente sublimando os quereres e as reinvenções de nós mesmos que temos legítimo direito de morrer tentando.]



P.S.: O blog “Porta dos Fundos” encerra esse ano sabático aderindo ao movimento “Fechado pra Balanço”. Esse espaço entrará em recesso por tempo indeterminado numa tentativa sincera de manter-se vivo com alguma criatividade. A autora permitiu-se um tempo necessário para recuperar-se das exigências que o existir tem imposto. Por uma questão de sobrevivência pessoal precisarei aprender a respirar com um pouco mais de paciência e de leveza. Talvez volte a escrever. Pode ser também que a pausa seja prolongada e  retorne apenas naqueles momentos que a esperança me faltar em níveis tão ameaçadores que eu já não suporte mais viver sem poesia e fique relendo (quem sabe revivendo!) o que já deixei aqui. Acredite... Eu não tenho nenhuma cópia da maioria das postagens deixadas no blog e pretendo que continue assim. Talvez desista de vez e venha somente para tirá-lo definitivamente do ar. A vida é insuficiente mesmo. Vive sempre por aí nos cobrando mais insistência, mas é o que temos afinal. Então, melhor tratar de viver antes que ela acabe!

sábado, 10 de novembro de 2012

Habilitação cardíaca

O coração é um ser inapto à sinalização.
Não sabe aonde transita, mas chega lá mesmo assim.
Cansado de procurar coordenadas no chão,
termina sempre no mesmo vão de onde partiu.
As chegadas são iguais às largadas.

Só que mais desidratadas e exaustas que as partidas.
Nosso personagem de sentimentos tão nobres,
aproveita o breve sono da razão

e assume o comando da direção.
Enche a pista de postes de exclamação
e de reticentes e maiúsculos pontos de interrogação.
Estes mesmos que parecem um guarda-chuva,
mas não nos protegem das tempestades
nem das revoltosas desilusões do tempo. 


Está escrito:
-Não ultrapasse na faixa contínua.

-Cuidado nas curvas fechadas com pista molhada.
-Ligue o farol nos dias de neblina. 

Mas nosso imperfeito herói ignora
o letreiro luminoso com a palavra “PERIGO”.
Chega e entra sem licença poética...
Pede invariavelmente informações ao guardinha,
mas continua a ser perder na primeira esquina.

Pronto. Está feito o estrago.
Colisão frontal do desnudo ventrículo direito com o muro.  
Depois saí meio atordoado e contudido,
tropeçando no próprio esboço de sorriso,

feito mais para dentro do que fora.
Promovera uma comovente e terna ocorrência policial
como só um idiota, contente e sarcástico, 
é capaz de fazer.
Por causa dele inventaram o seguro,
o reboque e o suporte avançado de vida. 

Agradeçam-no, já!




[Metalinguagem da metalinguagem: 1) O suporte avançado de vida, mais conhecido pela sigla em inglês ACLS, foi criado pela American Heart Association e consiste numa série de protocolos com manobras médicas (invasivas ou não) realizadas na tentativa estabilizar clinicamente um paciente durante atendimento hospitalar. 2) Nos traumatismos torácicos fechados envolvendo alta energia cinética podem ocorrer contusões miocárdicas, sendo o ventrículo direito a câmara cardíaca mais acometida.]

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Modus operandi


Não há serventia na poesia.
A questão central é para o que ela não serve.
Qual seu acento de honra no campo das inutilidades?
Ao contrário do que se possa imaginar,
ela não aumenta teu poder de sedução nem movimenta tua vida amorosa.
Pode inclusive tornar-te pouco prática para as coisas práticas da vida.
Ela não prepara tua torrada de manhã,
como também não te defende na frente do chefe dos teus constantes atrasos.
O mais certo é que ela não se fará de rogada 
na hora de servir teu pranto de bandeja no jantar.

Veja bem...
Clarice parecia uma mulher irremediavelmente noturna e melancólica,
Bandeira confessou ter medo da morte mesmo depois de conhecer a Pasárgada
e nem o Tejo e os quatro heterônimos salvaram o brilhante poeta português
da desassossegada saudade de sua aldeia.
Não se iluda.
O eu lírico viverá duelando com a pessoa jurídica.
A poesia não arruma tua cama, não frita teu hambúrguer nem gela tua bebida.
Agora, para todo o resto ela serve.
E muito bem!

sábado, 20 de outubro de 2012

Incertezas

O substrato da vida é essa areia movediça,
semi-líquida e quebradiça que a gente vê.
Ela te beija todas as manhãs com a boca molhada de café
enquanto você, docemente iludida, se convence
que não haverá mais nada tão amargo no restante do dia.
Depois te acalma elogiando teus cabelos negros e sedosos,
mas nem te avisa que vai chover logo mais tarde.
Ainda ri da alface entre teus dentes na hora do almoço
e do ônibus lotado no final da tarde espremendo tuas esperanças.
Por fim, te aperta e depois afrouxa
enquanto te embrulha de presente num papel de pão
que você deixou de comer para ouvir aquelas velhas desculpas.

   - “Calma. O tempo é senhor da razão”.

Aí, ela vira as costas e faz careta para você.
De graça, puxa o tapete do teu coração
e ainda tem a cara de  pau de colocar de novo
estrelas na sola dos teus pés.



domingo, 14 de outubro de 2012

Devaneios insones- Loser

   Luísa já desistiu de entender o tempo que o passar do tempo não resolve, a contrapartida do tédio e o resquício amargo que fica na boca toda vez que a felicidade é mais doce que um sorvete de creme. Talvez a vida seja mesmo mais cinematográfica do que os poetas imaginaram. Depois de pouco mais de 1 hora e 20 minutos, a vida volta insuportavelmente monotemática e continuará sendo necessário tirar a roupa molhada antes que o resfriado chegue bem como jogar a latinha de refrigerante e o saquinho de pipoca no lixo enquanto se acostuma com a claridade do dia do lado de fora da sala de cinema. Para ela, quem se esparrama muito incorre no risco de não se encontrar mais depois e, às vezes, seguir em frente, apesar de muito óbvio, significa nunca mais achar o caminho de volta, mesmo que o lugar atual nem seja assim tão bom a ponto de compensar a estadia. 
     Nesse ponto, Luísa achava que a metáfora do sofá se aplica com maestria para a vida. É lugar pequeno, as almofadas são indiferentes e mal cabem as próprias costas. Pelo menos de lá dá para contar os ladrilhos do chão como alguém que prefere pular amarelinha a desfilar numa passarela. Preferia a desculpa para deixar passar a hora de comprar o pão. E se o café da manhã já começava com atraso, para que esperar motivos para colocar a mesa do jantar? De que adianta um vestido lindo se a vida que se vive dentro dele não merece o decote sensual que ele tem?
     Luísa acreditava mais na existência do Bêbado do que da Equilibrista, mais que a própria Elis Regina na interpretação mais visceral dessa conhecida canção. Sentia uma grande identificação com todos aqueles que já frequentaram a rua dos perdedores, aqueles que quando não ficavam sozinhos no recreio estavam tropeçando em alguma escada do pátio, daqueles que se afogavam na piscina das próprias mágoas ou daqueles mais amigos da cantina do que da quadra de esportes. Só eles seriam capazes de entender sua falta de motivos para os brindes de hoje. Seu cartão da biblioteca tinha mais livros emprestados que lidos, mais eventos não comparecidos e mais sobrancelhas arqueadas que risos fartos. As lágrimas dos tempos do colégio foram cuidadosamente colecionadas em caixinhas coloridas para não secarem. Uma para cada dia da semana. Com carinho, catalogava também as ideias incompreendidas e nunca premiadas das feiras de ciência, a falta de ar com apenas duas voltas na quadra de vôlei, o prêmio de último lugar nas olimpíadas escolares, a eterna confusão entre direito e esquerdo e a atração do próprio pé por um buraco ou por uma casca de banana qualquer.
     A vida escolar também tem seus incompreendidos encantos. A ela, Luísa devia os joelhos esfolados, o vermelho vivo do boletim e o troféu de primeira substituta da última reserva do segundo time do esporte menos praticado pelos colegas do colégio.       

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Concluídos 27%


     Comemoro hoje meu vigésimo sétimo aniversário. Ou seria meu quadragésimo? Tudo depende de quanto tempo deixei de viver nos últimos anos. O que posso afirmar sinceramente é que a minha idade nunca combinou comigo. Acho até que já nasci com certidão de velhice e que minha alma veio lá dos anos 70 (Sabe, uma espécie de "Velha e Louca" como diz uma doce canção por aí?!).

     Escolhi a roupa, tomei banho, sequei o cabelo e retoquei as olheiras. Acho até que essas nem Deus consegue mais dar jeito. Separei também para usar aquele colar com conchas que o mar da saudade um dia me trouxe. Começo o dia respondendo com voz firme ao chamado da vida: “Presente. Cá estou!”


     Encaro-me no espelho do banheiro enquanto escovo os dentes e percebo que já amanheci tarde. Tento descobrir no que me tornei após tantos percursos acidentais, tantos deslizes, tantos esquecimentos, tantos afetos, tantos amores. Alma encharcada, repleta de chão, desistência completa de qualquer ideia conformada de me adiar mais uma vez. A vida é assim mesmo tão urgente ou sou eu que ando perdida em suas reticentes vírgulas? Suspiro fundo, pensativa e calada, ao invés de responder.


     Quero um dia de interjeição. Dizer um sonoro e convicto “alto lá” ao diploma do fracasso e ao chute no traseiro. Quero a arquitetura inventiva de dias que ainda não aconteceram, mas gelam as minhas mãos, trêmulas como de uma criança, de tanta emoção incontida.


     Sopro as velinhas do bolo imaginário que eu mesma preparei usando como ingredientes as insatisfações que acumulei ao longo do meu caminho. Cara feia agora é doce de leite e o fracasso, a cerejinha de enfeite final. A receita da vida, às vezes, requer um recheio de dúvidas inconvenientes e um sabor agridoce de cinismo. Antes de sair de casa, tomei café sentada ali, sozinha, na minha gelada cozinha. Depois caí na gargalhada pensando na meia dúzia de planos que eu havia projetado para concluir antes dos 30 anos. A vida me ensinou a duras penas a desengavetar a poesia, mesmo que ela continue sendo incorrigivelmente tímida e triste. Quem mandou Drummond aparecer na minha vida aos 13 anos.

     Descobri, nessa altura da vida, que ironizar-se é o melhor presente que alguém pode dar a si mesmo.  Decidi, finalmente, acatar o conselho insistente e sábio daquele anjo torto que vive na sombra mansa desse vasto mundo a me dizer:


-Vai, Patrícia, ser gauche na vida!


     E agora, com licença, que eu vou ali errar um pouco mais.



P.S.:  Descobrir que você nasceu no mesmo dia em que foi instituído o horário de verão no Brasil pode dizer muito da sua própria personalidade. Talvez isso justifique, em grande parte, a minha inadequação com as horas e a constante predileção por esse jeito de fim de tarde que a vida tem. Para encerrar, a trilha sonora escolhida para hoje...


Entregue-se- Tiê


Velha e Louca- Mallu Magalhães


Eu quero ser feliz agora- Oswaldo Montenegro


Deus me proteja- Chico César


O vencedor- Los Hermanos



“Aniversário é uma festa para te lembrar do que resta” 

Millôr Fernandes

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Gênesis

Conta a lenda que em tempos muito longínquos,
num lugar remoto conhecido como “O Reino dos Desiludidos”,
Deus disse: “Faça-se o coração!”.
Em seguida, temendo os desatinos de sua primeira criação,
(seria também sua predileta?)
proferiu em tom assertivo: “Faça-se o cérebro!”
Daí, o cérebro olhou para o coração retrospectivamente
e teve muita pena.

(A última série de casos publicada recentemente aponta que a referida espécie poderá ter um destino final ainda mais trágico que a extinção dos dinossauros. No entanto, ainda não há consenso na literatura.)

domingo, 16 de setembro de 2012

Devaneios insones- Previsão do tempo

     Luísa, às vezes, não concorda nem consigo mesma. É pessimista demais para acreditar em coincidências banais. A chegada da primavera é mais complexa do que simplesmente circular uma data no calendário. As flores do seu jardim, desobedecendo às tradições climáticas, teimavam manterem-se tímidas até quando o resto do mundo resolvia desabrochar. De tudo que era, era bem menos que um terço. Será que a vida já não era mais tão bonita assim quanto cantou Gonzaguinha ou estaria ela embebida de tal forma num existencialismo descrente?  
     Precisava aprofundar-se na inversão do “cogito” cartesiano e andar de mãos dadas com Lacan aos menos nas tardes de domingo. “Eu sou onde não penso”, repetia como se fosse uma devotada profissão de fé em si mesma. Precisava dizer, ainda que não conseguisse atingir toda a não-racionalidade daquela expressão, mas seu alter ego intuía. Mesmo que tropeçasse dali a pouco mais de dois passos (isso certamente iria acontecer), valorizava aquele breve e inexplicável instante de ternura e encanto.  
     Desacostumar-se é uma vitória íntima e sigilosa, como numa festa ruim que dependemos de carona para ir embora ou aquela sensação perene na vida de quem saiu, mas acabou esquecendo a porta destrancada outra vez. O que adianta tanto esforço se no final das contas quem menos chora é quem mais se oprime e quem menos busca é a pessoa que mais se perde? 
     O jeito talvez seja mesmo achar um poema pra deitar quietinha entre um verso e outro até esquecer-se de seus medos. Lá pelo menos não haveria necessidade de justificar os invernos tão prolongados. Os poetas sim, eles entendem desses não-lugares. Da palavra não dita, do suspiro por trás de uma confissão não declarada, dos lírios que enfeitam a noite com suaves perfumes e dos cactos que também encantam os olhares pelas contradições da tristeza.
     Luísa, às vezes, também pensava que a vida era um cumprimento de mão frouxo. Mantinha-se sempre ali por perto, mas não a protegia. No fundo, não existe generosidade partilhada. O dia é uma prestação única e à vista. Ninguém pode pedir desconto para a vida. Ou você faz do calor uma água de coco ou passa a vida inteira reclamando refém do ar-condicionado. Triste é concluir que só tem lucidez nessa vida quem não tem coisa melhor para ter.


Tarde de Domingo, Max 32ºC, Min. 20ºC.  
Sol com aumento de nuvens ao longo do dia. 
À noite podem ocorrer pancadas de chuva.

sábado, 8 de setembro de 2012

Adultices


A pior das adultices é a adulteração do choro.
Aquela que faz da vida um riso batizado,
como aqueles similares falsificados
com preço barato de liquidação.
De que vale cara de feliz,
ombros eretos e lábios hidratados,
se o comum da vida é esse corriqueiro
jeito fantasmagórico de quem camufla as olheiras
enquanto se ilude no espelho do banheiro?
Viver é como andar de bicicleta.
Às vezes a gente tem preguiça e não vai.
Outras vezes cria coragem, vai e se esborracha no chão.
Depois, em casa, se abraça, 
entre soluços e berros, à caixinha de curativos.
O melhor das pessoas são as histórias 
que as cicatrizes dos joelhos contam.

domingo, 19 de agosto de 2012

Dia Internacional da Fotografia


14 de agosto de 1945. "O Beijo" em Times Square
No dia em que os americanos saíram às ruas para comemorar o fim da II Guerra Mundial, um soldado da marinha norte-americana dá um beijo apaixonado em uma enfermeira que acabara de conhecer.




6 de setembro de 1969- Capa do álbum “Abbey Road” dos "The Beathes"

O quarteto de Liverpool atravessa aquela que se tornaria a faixa de pedestres mais famosa do mundo, na esquina das ruas Abbey Road com Grove End na cidade de Londres. 
8 de junho de 1972- " A menina do Napalm" 

Uma menina de apenas 9 anos corre desesperada com o corpo queimado por napalm após seu vilarejo em  Trang Bang ter sido atingido por um bombardeio norte-americano durante a Guerra do Vietnã.
5 de junho de 1989- “O Rebelde Desconhecido 

Durante os protestos na Praça da Paz Celestial, na cidade de Pequim, um misterioso homem fica em pé em frente a uma fila de tanques chineses forçando-os a parar.






Os 4 registros fotográficos mais importantes da história da humanidade na minha leiga e humilde opinião. O ordem de apresentação das imagens é por mera consideração afetiva. 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Anatomia de superfície- Poema concreto nº1

As bochechas, o tobogã das lágrimas.
O abraço, o bambolê colorido.
Os pés gelados, o patinete dos sonhos.
O colo, o sofá do corpo.
As covinhas, o esconderijo secreto.
As olheiras, o medo da noite escura.
Os primeiros fios brancos, a lareira da casa de inverno.
A boca, o brigadeiro de colher.
O sorriso, a tarde mais ensolarada do verão.
O cabelo, o tapete persa da sala de estar.
As sardas, a sinalização do trânsito.
A voz grave, a água de coco.
A gargalhada, o eterno clássico do blues.
A cicatriz do joelho, o Happy Hour de sexta-feira.
O bocejo, o edredom de casal.
A piscadela de olhos, o final de semana prolongado.

O amor é o substantivo da vida!

domingo, 5 de agosto de 2012

Adorável tragédia

Entre o derradeiro começo e a indespedível partida,
existe uma ponte imaterializável
pela qual passam os transeuntes distraídos.
Estes inventores de melodias com a ponta dos dedos!
Eles detêm a senha do esquecimento como se fossem
invejados detratores do regime das urgências existenciais.
Pobres, famintos, fora de forma e cronicamente desculpados.
Estes adoráveis mal sucedidos na vida!
Morrem todos os dias nos graves acidentes de percurso,
colorindo o mundo como uma televisão fora do ar.
Só eles sentem a beleza sutil da felicidade acompanhada...
Aquela que traz no pacote uma imensa vontade de chorar.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Devaneios insones- Catavento

     O olhar desperto de Luísa resumia tudo. Ela se perguntava insistentemente qual a função da palavra se as distâncias nunca diminuíam por mais que se tentasse falar. Chegava até a postular a tese de que a linguagem, desde sua invenção como forma de expressão, nasceu para satisfazer nosso desejo de exibicionismo como se pudéssemos construir uma versão melhorada de nós próprios, na qual os fracassos aparecessem somente lá pelo vigésimo capítulo. Tinha certeza de que o excesso de educação e paciência não resistiria a uma marginal congestionada nem ressarciria a incompletude dos sonhos, muito menos aceitaria recuperar o tempo das noites mal dormidas por motivos fúteis. 
     O olhar de doce menina tinha também um jeito de passado, a melancolia de uma valsinha, uma rima casada com a cadência do bandolim, um dueto quase perfeito entre letra e carinho. Às vezes era também tão banal quanto um anúncio publicitário de xampu, ou um caderno de notícias inusitadas de domingo de um jornal que ninguém lê ou mesmo um desejo sincero de fazer arte até na desinteressante página dos classificados. Haviam dias em que era feliz gramaticalmente como se na raiz da palavra houvesse uma espécie de seiva substancialmente vital, noutros amanhecia amargurada como se tivesse tomado cicuta ou paralisada como se tivesse sido atingida por curare.   Não raro era igualmente passional feito uma canção de Caymmi e tão curiosa a ponto de se candidatar a uma bolsa de estudos cujo projeto de pesquisa pretendia estudar a desatenção que movia os tropeçadores de calçadas. Daria seu reino só para descobrir no que pensavam as minorias distraídas e atrapalhadas que produziam as mais espontâneas e poéticas cenas daquela cidade de agendas sempre tão abarrotadas e sérios compromissos profissionais.
     Nela se contradizia a clássica Lei da Física, a qual sentencia categoricamente que duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar. Em Luísa, contudo, habitavam, espacial e temporalmente, a criança que se comove com o cheiro de terra molhada no quintal de casa e a velha ranzinza que tem ciúme até das próprias panelas. Esses dias, inclusive, foi assaltada repentinamente pela lembrança do dia em que apelidou seu coração de catavento e riu até perder as forças quando o brinquedinho falhou por falta de pilha.
     Depois adormeceria cansada de existir, como há muito tempo não ousava fazer, ternamente reconciliada com suas próprias contradições. Por fim, a voz de Gal Costa ressona no despertador e ela acorda espreguiçando ao som de "João Valentão", cheia de bons modos como se fosse uma princesa de contos de fadas. 


 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Falso juramento

E que haja poesia, acima de tudo, apesar dos desencontros.
E graça, abaixo de todos, nos mais variados desassombros.
Que eu escreva enquanto houver espaço
e minta com a convicção de um bom ladrão.
Como se no meio da estrada nem quisesse ter
pernas o suficiente para correr.
Como coisa que não se fala
mas dentro de alguém se cala
feito um estampido ensurdecedor.
Há tempos eu soo mais do que sou.
Nesse viés de tanto revés,
mais seguro meter os pés
nas tantas ressalvas que o mundo faz


[Segundo exemplar da Série: "Férias recuperando a criatividade da autora" ]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Devaneios insones- A raiz quadrada de 19

     Era, provavelmente, uma equação insolúvel ou uma segunda-feira dando início a um inverno insuportável. Luísa parecia ter saído de um filme francês do final dos anos 90 ou de alguma canção romântica daquelas bandas alternativas do rock inglês dos anos 80. Para ela, no entanto, tudo não passava de um prenúncio de julho antecipando seus incômodos sentimentos.
     Naquela noite, se pudesse, a jovem daria um forte e emocionado abraço em Newton pela genialidade expressa na Lei da Inércia. Qualquer movimentação nessa altura da vida seria profundamente agressiva e contraditória. Já estava decretado o fracasso pessoal e nada que fizesse poderia mudar o inexorável destino daquele prolongado inverno. Fingiu anoitecer sentada na cama com os olhos semicerrados e olhou para o abajur queimado em cima do criado mudo e para a caixinha de música que há mais de um ano esperava conserto. As fotos no mural da sala também dispensavam qualquer explicação mais detalhada sobre a sua personalidade vazia. O resto do cenário se resumia num quarto bagunçado em uma noite de poucas estrelas e sem lua, iluminado apenas por uma luz longínqua vinda de um dos edifícios daquela cidade de sucessos empresariais e fracassos humanos. A única distração era pensar numa revolução em causa própria: destruir os ponteiros do relógio para remediar seus constantes atrasos.
     Para o café da manhã, Luísa preparou leite com café (sua especialidade culinária predileta) e bolacha de água e sal, aquela mesma com gosto de nada que já chega esfarelada só de ser olhada na prateleira do supermercado. De pijamas, ainda, sentou-se na frente do computador, após incontáveis meses sem uma inspiração sequer, e reiniciou, pela enésima vez sem uma inspiração sequer, a primeira página do romance que pretendia escrever desde a adolescência. Difícil era não matar o protagonista na primeira linha, fugir do desespero que sentia após concluir o terceiro diálogo do texto e de citar fatidicamente a “Metafísica do Amor / Metafísica da Morte” de Schopenhauer já no primeiro parágrafo. Mas, para que insistir tanto nos detalhes estéticos ou na procura de um discurso maduro, se tudo sempre acaba em folhetim popularesco com a sobriedade da rima alcoolizada comicamente na sarjeta de uma poesia tão pueril e insegura?
     A única conclusão a que Luísa conseguiu chegar era de que, se um dia escrevesse sobre o amor, o faria na forma de contos dramáticos e curtos para não cansar o leitor. Isso porque, quando se chora, as palavras cumprem a sina anárquica e autoritária de romper a arrogância do silêncio sem pedir licença aos ouvintes. Desistir é também uma forma de guardar o que nunca se teve. De resto, só faltava escrever que o amor não é um quadrado perfeito, tem gosto de café amargo e um jeito sem graça e bobo de rock do passado.

domingo, 17 de junho de 2012

Ambiguidades

Quem bate mais na porta: quem parte ou quem retorna?
Quanto choro é preciso para sustentar a identidade de um único riso?
Quantos sulcos no rosto são necessários para manter a juventude da alma?
De quantas perdas a vitória se faz?
Quanta dúvida existe por trás de uma convicção bem fundamentada?
Quem que no certo procurou, mas se perdeu depois?
Quem nunca se descobriu no ódio amando às avessas?
A luz esconde as sombras?
O muito não seria apenas o pouco multiplicado?
E a saudade faz a alegria entristecer?

[A autora no momento mais interrogativo, investigativo e pueril da sua vida]

sexta-feira, 8 de junho de 2012

A origem das enfermidades


A maioria das doenças nasce da palavra.
Ou melhor, da ausência dela dita na hora certa.
Mesmo inapropriada, diga.
Até no superlativo, diga.
Pronuncie agora em alto e bom tom um palavrão.
O silêncio dói mais que faca penetrando no peito.
Está escrito: nível A de comprovação.
A vivência ensina que a bactéria mais nociva
pode vir acompanhada da palavra “querida”.
Palavra que não saí é raiva que calcifica.
Se não sai é tarefa sua acertar depois as contas
com a litíase e a prisão de ventre.
Nem adianta ter plano de saúde.
Um dia a conta vem.
Quanto mais visceral, mais imune se é.
Cólica por cólica, prefiro a dor do parto.
Dessa consciência que o poema me traz. 

[A autora pensando como o poema consegue ser o melhor Tratado de Medicina Interna que a humanidade já inventou]

sábado, 2 de junho de 2012

Dois metros e meio de grito


No quesito quantificações,
o amor é das medidas o substrato mais sem consenso.
Incompletas considerações,
aritmética de prejuízos e sustos,
ambíguas voltas sem reembolso de custos.
Chatos cálculos, mas é preciso fazê-los.

A ponta pontiaguda do lápis sempre sacrifica,
ao final das contas, o já endividado bolso do peito.
Se sorte no jogo traz de brinde azar no amor,
de que me vale sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é meu ponto forte?
Responda, se for capaz,
meu amor?



[A autora brincando de Paulo Leminski numa manhã, quase tarde, repleta de cinismo]

domingo, 13 de maio de 2012

Saudade

Minha mãe, minha doce menina,
pudera eu abraçar-te e consolar-te de teus medos
ninando teus sonhos como você faz com os meus.
Agasalhar-te, minha pequena, nas noites de frio
até adormeceres em meus braços feito criança de colo.
Fazer-te esquecer das incertezas do futuro,
do mesmo modo como me distraias contando histórias
de tua paixão alucinada pelo gênios da literatura.
Desde cedo, destes-me a poesia como secreta confidente.
Agora, quem me dera bordar em teu rosto um riso largo
como aquele com que me recebes em casa após minhas constantes partidas.
E, por fim, acender-te ainda mais o olhar de mulher realizada
como iluminas o meu nas horas mais difíceis.
Oh minha mãezinha, pudera eu homenagear-te como merecestes.
Cá entre nós, deixo meu singelo recado.
Meu canto mais forte, minha rima mais genuinamente emotiva:
Que saudade eu sinto de você aqui.




 [A autora compartilha também a música que está tocando pela enésima vez em sua tarde: o clássico "Blowin'In The Wind" de Bob Dylan. Essa é a canção preferida da minha mãe, tanto que posso até imaginar a cena dela cantando enquanto lavamos a louça do almoço de domingo.]

sábado, 28 de abril de 2012

Gula

O amor é cheio de excentricidades.
Um bocejo de desculpas antecipadas e instantâneas.
Na boca do estômago raros sorrisos doces e tristes
e um sono levíssimo.
Desperta aos mínimos sussurros
para a assaltar, em segredo,
a calórica geladeira dos desejos.

domingo, 22 de abril de 2012

Dor fantasma

Disse a ciência está dito.
Eu é que não me arrisco a ser "do-contra”.
“Quando alguém sofre uma amputação, 
a parte amputada ainda existe no seu mapa mental”
Disse o enfático médico cheio de razão.
“Mesmo quando os olhos não veem, o cérebro sente”
Declamou o poeta cheio de emoção.
Eu, que nunca amputei um braço ou uma perna,
mas já perdi incontáveis partes de mim,
vivo sentindo uma coceirinha pelas pessoas que já se foram
porque passaram a morar longe,
ou porque morreram de desastre,
ou simplesmente se cansaram de mim.

domingo, 8 de abril de 2012

Nonsense

Alívio seria se você se mudasse de mim
ou se viesse de novo repetir o que foi bom.
Entre tetos, aconchegos e abrigos
até o dia nos amanhecer amigos.

[A autora, numa manhã nonsense de páscoa, brincando com a definição do poeta Mário Quintana: “Amor é quando a gente mora um no outro.” ]

segunda-feira, 12 de março de 2012

E-mail

     Sabe que eu nem me reconheço mais. Depois de algum tempo e poucas horas de Blues aprendi a amadurecer para fora. Dei autonomia para a discordância e abandonei os títulos, as nomenclaturas. Nessa altura da vida nenhuma vertente literária é capaz de salvar o poema do abismo nem consolá-lo da desilusão amorosa. Preferi estabelecer um novo eu e decidi aperfeiçoar minha crítica de mundo. Prestei atenção na experiência de que é conversar. 
     Deixei a vida passar, critiquei e superei dando um passo além. Talvez outro dia volte dois passos atrás e pense melhor, mas penso... Prefiro assim: não alugar molduras, não fugir das angústias, não esconder a bagunça da casa nem tampouco as indecisões do futuro. 
     Reconheci minhas inseguranças e nem por isso me diminuí. Vi a caixa de e-mail vazia, escutei a chuva suave pela janela, preparei a mesa do jantar para ninguém e nem me incomodei como antes. Fui mais gente que poeta. 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Prece por um amigo

 Meu Deus, 

Senhor dos destinos insondáveis dos homens,

confesso humildemente minha incapacidade de compreender a terminalidade da vida.
É tão difícil ter a valentia necessária para entender os ventos impetuosos da morte e enxergá-la metaforicamente como o sábio autor a descreveu: a curva que nos espera ao final da estrada...
Só peço que não permitais que aceitemos com naturalidade a partida prematura de nossos jovens. Que nunca nos falte a inquietação, o incômodo desassossego, a reflexão dos porquês. 
Ajudai-me a amadurecer a cada dia com as lições que a vida me proporcionar.
Que eu me transforme a partir dos acontecimentos e que estes não sejam em vão.
Que a medicina me ensine a calar quando me faltarem palavras e a amar com mais ternura porque nada pode ser tão urgente quanto o amor.
Que a belíssima inspiração do poeta gaúcho se cumpra entre nós...
  
“A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim..."

Mário Quintana, Poesia Completa.


Que os anjos do céu digam “amém” à doce rima de seus versos e os homens de boa vontade vivam motivados pelo objetivo de concretizá-la.

[Em homenagem ao querido Fabrício que faleceu ontem na Enfermaria de Moléstias Infecciosas do HC-UFU, às 10h02min numa manhã ensolarada como poucas. Infelizmente, os bons ainda continuam a morrer muito jovens]